Tudo acontece por um motivo

A vida é uma montanha-russa de aprendizados. Dias antes da seletiva olímpica, tive crise de apendicite

Stephanie Balduccini, em depoimento a Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo

Duas semanas antes da seletiva olímpica, o meu mundo virou de ponta cabeça. Descobri que estava com apendicite após cinco longos meses de investigação da pior dor que já senti na minha vida. Quando recebi o diagnóstico, nos Estados Unidos, liguei para a minha mãe - eram 5h da manhã no Brasil - aos prantos.

Não é possível ter esse azar. Até hoje eu realmente não entendo por que teve de acontecer justamente neste momento. Estava com tempos muito bons nos treinamentos e vi a esperança no índice olímpico ali na minha frente ficar ameaçado. Finalmente estava plenamente feliz com meu desempenho na piscina. Até que fui derrubada com a notícia.

Comecei a sentir dores em novembro do ano passado. A desconfiança era de endometriose. Não passava pela cabeça dos médicos que era apendicite. A pontada sempre me visitava ao menos uma vez ao mês e não aguentava mais ir ao hospital e voltar para casa sem solução. Um dia, estava sozinha em casa e senti tanta dor que passei sete horas chorando deitada, no chão do banheiro.

Nadei a seletiva olímpica medicada com antibióticos. Claro que não estava 100%. Vou para as Olimpíadas sem ter garantido o resultado individual que queria. Acredito que tudo acontece por uma razão, mas eu não consigo chegar a uma conclusão. Por enquanto, estou agarrada na explicação que meu técnico encontrou: tudo isso está acontecendo para eu chegar cheia de garra e ainda mais forte nos Jogos de 2028.

De repente, Olimpíadas

Eu e meu irmão gêmeo sempre tivemos o incentivo dos nossos pais para praticarmos natação, mas claro que nunca houve uma pressão pela profissionalização. Eles prezavam pela nossa felicidade. No decorrer dos anos, fui entendendo o quanto as competições me davam satisfação e me deixavam feliz.

Fui campeã e recordista brasileira de categoria quando criança até que chegou a pandemia em 2020 e precisei parar de nadar. Foi neste momento que percebi que era realmente aquilo que queria para a minha vida, eu gosto muito do que eu faço. É sempre assim, né? Quando a gente perde algo, a saudade vem e aí que cai a ficha.

Até então, as Olimpíadas era algo impossível. Quem pensaria que aos 15 anos de idade eu poderia participar de um evento tão grandioso, com ídolos das águas? Chegou o fim de 2020, a gente pôde voltar a competir e, pela primeira vez, ganhei medalha em um Brasileiro Absoluto tanto nos 50m quanto nos 100m livre. Eu fiquei chocada por ter sido um ano tão difícil? Poder ter recuperado tão rápido a ponto de fazer quase o melhor tempo da vida, depois de quase metade de um ano sem nadar.

A possibilidade das Olimpíadas só começou a se tornar real na minha cabeça depois que eu peguei a final dos 100m livre ao lado da Etiene Medeiros, que sempre foi uma inspiração para mim. Então, aos 16 anos, fui para Tóquio em 2021 como a atleta mais jovem da natação brasileira em 41 anos. Foi surreal. Dali para frente, meu amor pelo esporte só cresceu.

A insegurança

Quando voltei das Olimpíadas e fui amadurecendo, os meus resultados durante os treinos começaram a estabilizar. É natural. O atleta, quando mais novo, vem numa crescente meteórica até que a evolução diminui de ritmo. Só que calhou com um comunicado marcante do meu técnico na época, o Wladmilson Veiga. No fim do primeiro semestre de 2022, ele me avisou que estava de mudança para o Canadá.

Fiquei perdida. Foram 11 anos nadando no Clube Paineiras, eu cresci lá. Passei a ter dificuldade em me adaptar com outros técnicos, porque acreditava que meu sucesso estava diretamente ligado ao Wlad. Pensava que sem ele, não continuaria a ser quem eu era. Como eu não conseguia melhorar tão rápido como antes, comecei a ligar o fato da partida dele aos meus resultados. Na verdade, hoje eu entendo que isso ia acontecer, ele indo embora ou não.

Fui para o Mundial de Budapeste com meu novo treinador e fui super bem, mas na época não valorizava. Eu estava sempre infeliz com tudo o que fazia. Com tudo o que aconteceu, foi complexo de raciocinar que eu estava ficando mais velha e era normal que eu tivesse mais dificuldade de baixar os tempos.

Dúvidas

Era uma fase que eu duvidava de tudo o que fazia. Hoje, eu estou bem melhor. Não 100%, mas consigo ter uma percepção real do meu desempenho e amadurecimento. Neste período, eu fui para três Mundiais - Budapeste, Fukuoka e Melbourne - e peguei semifinal em todos. Poxa, é muito bom, né? Mas não enxergava isso.

Estava infeliz fazendo o que mais gostava. Então, no fim de 2022, eu cheguei à conclusão que precisava mudar de ares, afinal eram 11 anos representando o mesmo clube, você começa a ficar acostumada, sabe? Fechei com o Pinheiros, e passei a nadar por lá. Nesse momento, a mídia começou a questionar os meus resultados. Por causa disso, até hoje não tenho conta no Twitter - atual X. Já me cobro o suficiente. Não preciso da pressão de outras pessoas que não sabem nem metade do que eu passo diariamente.

Mudança era última chance à natação

Consegui uma bolsa para estudar e praticar natação em Michigan, numa das melhores universidades dos Estados Unidos. Os técnicos do Pinheiros já sabiam no meio de 2023 que eu iria embora e, em agosto, também passei a representar a Unisanta. Era algo que sempre esteve nos planos da minha família desde que nasci, acabou se concretizando e tornando-se a virada de chave que precisava.

Eu sou muito apegada aos meus pais, então os primeiros quatro meses fora do país foram muito complicados. Só que mesmo à distância, eles continuaram me apoiando e passando confiança. Fiz amigos que hoje considero como a minha família daqui. Com esse combo, a minha atuação voltou ao que era lá no início, voltou no ponto que eu queria estar.

Sou apaixonada pelos treinos nos EUA. Meu técnico Bryon Tansel é muito bom. Ele conseguiu colocar na minha cabeça que eu mesma posso tirar o melhor de mim. Sempre acreditei, depois das Olimpíadas, que eu fui feita para fazer algo melhor do que eu estava fazendo. E eu finalmente estava voltando àquele passo de fazer o que eu considerava muito bom. Estava feliz.

Comecei a nadar em jardas e obtive resultados incríveis. Entrei na NCAA, a associação atlética das universidades norte-americanas, com o quarto melhor tempo do país. Fui para o Mundial de Doha neste ano para ajudar a classificar os revezamentos do Brasil e nadei para 54s05 os 100m, dois centésimos do recorde sul-americano. Meu técnico falava: "A marca dos 53s tá aí. É só quebrar a barreira mental".

Altos e baixos

Voltei um pouco desgastada do Mundial. Sabia que ia ser assim, mas não poderia deixar de ir e acabar prejudicando outras meninas que poderiam ter a oportunidade de participar do revezamento nas Olimpíadas. Isso refletiu em meus resultados nas competições seguintes e aqueles pensamentos negativos voltaram à minha cabeça.

Caí naquele mesmo problema de questionar tudo o que eu faço. Mas estou melhorando, é um processo. Sei que meus resultados estão, também, diretamente ligados à saúde mental, que precisa estar em pleno equilíbrio.

Apendicite

A fase era muito boa. Após quase um ano treinando nos EUA, estava muito bem, conseguindo conciliar meus treinos com a faculdade de administração, o desempenho estava legal e eu tinha consciência disso. Eis que chega novembro de 2023 e uma dor incontrolável tomou meu corpo. Com ajuda dos meus amigos, fui para o hospital vomitando de tanta dor que sentia. Pensava que era cólica menstrual. Não encontraram nada. A suspeita era de endometriose. Passou.

Em dezembro, um dia antes de eu voltar para o Brasil para visitar minha família, a dor voltou. Era exatamente igual, inclusive as náuseas. Só que, desta vez, passei sete horas deitada no chão do banheiro porque não tinha ninguém para me levar ao hospital. Foi horrível.

Era algo meio cíclico. A dor me visitava quase que uma vez por mês. Até por isso pensavam que era endometriose. Também cheguei a pensar que era intoxicação alimentar, porque o incômodo foi embora depois do início do ano. Janeiro, fevereiro e março não tive nenhum problema, graças a Deus. Até duas semanas antes da seletiva olímpica.

Enfim, o diagnóstico

Estava tudo normal naquele dia. Até pensei que finalmente tinha me livrado da dor. Tomei um iogurte e fui malhar. Pouco depois, aquela tortura voltou com tudo. Passei a noite virada no celular, chorando com a minha mãe, porque não queria voltar ao hospital para passar horas lá sem soluções.

Tomei tudo quanto é remédio e nada. No dia seguinte, o médico da equipe de natação da faculdade me deu duas injeções, porque meu estômago já estava machucado de tanto vomitar. A dor acalmou e decidi jantar com as minhas amigas, assim eu me distrairia e não estaria sozinha. Lá, eu comecei a ter uma febre tão alta que quase convulsionei. Era a dor, acho que misturada com ataque de pânico.

Uma das amigas me viu naquela condição e me levou correndo ao hospital de novo. Me deram morfina e não funcionou. Passei a noite por lá, acompanhada dessa amiga. Finalmente, desconfiaram de apendicite. O diagnóstico foi confirmado e entrei em desespero.

Seletiva não foi dos sonhos

Os médicos deram a opção de tentar tratar com antibióticos antes de fazer a cirurgia. Topei, claro. Era a única opção para nadar a seletiva. Eu estava muito confiante, alcançando marcas inéditas na minha carreira. Estava no ponto que sempre quis.

Talvez tenha sido uma loucura. Mas o que eu ia fazer? O meu mundo estava de cabeça para baixo e, se eu fizesse a operação, não me recuperaria a tempo para a competição, que foi no início de maio. Esse antibiótico me deu esperança. Minha mãe viajou para os EUA, passou uma semana comigo e voltamos ao Brasil para a seletiva.

Na seletiva, garanti vaga para os revezamentos 4x100m, 4x200m livre e 4x100m medley misto. Não foi nem perto do que queria. Nadei sob o efeito de antibióticos, tratando infecção e com dores esporádicas, o corpo não responde como você quer. Depois da competição no Rio, fui para São Paulo e fiz a cirurgia - era inevitável.

A garrafinha dos 53s e a família americana

Eu acredito que tudo acontece por uma razão, mas eu não consigo descobrir ainda. Não desejo que uma situação como essa aconteça com ninguém. A luz que tenho é de uma conversa que tive com meu técnico? Ele pensa que toda essa sequência de fatos vão me fazer chegar nos Jogos de 2028 com mais garra. Ainda é um pouco frustrante, mas eu prefiro pensar assim.

Eu sou muito grata a todos que estiveram sempre comigo. Meus treinadores me ajudaram demais. Um deles, inclusive, pegou uma garrafinha, escreveu nela: "água dos 53s da Stephanie" e escondeu ela sempre pelos cantinhos da arena. Isso tudo só para me alegrar e motivar.

Eles me ensinaram muito a lidar com os meus sentimentos, com a dependência emocional. Hoje, eu valorizo muito mais os meus resultados.

Assim que me recuperei, voltei a Michigan com direito a uma recepção calorosa dos meus amigos. Eu me sinto em casa. Consegui retomar os treinos e estou bem alegre - considero uma vitória, porque é quase como recomeçar do zero, sabe?

A natação, seus valores e tudo que eu construí graças ao esporte formaram o meu amadurecimento. Agora, eu espero seguir melhorando para entregar um resultado importante para a natação brasileira em Paris, valorizando o momento e os pequenos passos - diferente de quatro anos atrás - e, depois, voltar com tudo já de olho no futuro, em Los Angeles-2028.

Minha História

Os Jogos Olímpicos de Paris estão se aproximando e, para marcar essa contagem regressiva, o projeto Minha História, do UOL Esporte, em que grandes nomes do esporte nacional contam, em suas palavras, o que viveram para chegar ao topo, vai levar até você relatos dos grandes nomes do esporte brasileiro.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

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